
Redescoberta musical
A cruzada da cravista Rosana Lanzelotte para tornar mais obras brasileiras disponíveis para os intérpretes.

Em 2005, foi celebrado o Ano do Brasil na França, com atividades culturais de todos os tipos. Os responsáveis por concertos musicais queriam apresentar as composições brasileiras para além dos já muito famosos Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e Tom Jobim (1927-1994), mas se depararam com uma barreira: quase não havia partituras disponíveis.
O problema era principalmente técnico. Os documentos existiam e estavam acessíveis, guardados em acervos como o da Biblioteca Nacional, da Academia Brasileira de Música e outros. No entanto, copiar as antigas partituras em papel seria difícil para estrangeiros. As versões digitais, por sua vez, eram fac-símiles desconfortáveis para os músicos.
Existem os arquivos conhecidos como "práticos", versões digitais facilmente legíveis pelos executantes. Porém, no caso de obras orquestrais, isto se traduz em retrabalhar centenas, às vezes milhares de páginas.
"Os franceses diziam: se o Brasil produziu compositores como Villa-Lobos e Tom Jobim, certamente tem outros grandes nomes. E é claro que tem", lembra a cravista e pesquisadora Rosana Lanzelotte, que colaborou com o projeto em parceria com o Instituto Français. "Mas, devido ao problema das partituras, os concertos acabaram acontecendo só com o material já disponível."
A lacuna bibliográfica incomodou a concertista. Por sorte, ela tinha uma particularidade, também era doutora de informática e e professora em universidades do Rio de Janeiro, como PUC-Rio e UNIRIO. A dupla trajetória profissional conduziu à fundação do portal Musica Brasilis, inaugurado em 2009, com o propósito de oferecer aos músicos as partituras de compositores brasileiros, clássicos e populares, cobrindo mais de 200 anos da história cultural do país.
"O que os músicos não podem tocar, o público não pode conhecer", afirma a fundadora do portal, que hoje conta com mais de 6.600 partituras, a maior parte pertencentes ao domínio público, mas também algumas oferecidas por compositores contemporâneos para divulgação. "Muitos autores jovens, que ainda não são consagrados, procuram o Musica Brasilis porque sabem que, disponibilizando sua música gratuitamente , têm mais chances de que ela seja tocada em concertos", diz Lanzelotte.
O Musica Brasilis se insere em uma tendência de redescoberta e divulgação da música brasileira, reconhecida por sua diversidade estilística e a qualidade de seus compositores, tanto no campo popular quanto no clássico. "O impulso para valorizar nossos próprios repertórios é bastante visível atualmente. No meu contato com os maestros, percebo que eles só não tocam mais a música brasileira porque não têm acesso às partituras", afirma Lanzelotte.

Entidades como a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), o Instituto Piano Brasileiro (IPB), a Academia Brasileira de Música e outras vêm buscando patrocínios para colocar na rede esse extenso repertório. De acordo com Lanzelotte, a estimativa é de que 80% das partituras de compositores brasileiros disponíveis nas bibliotecas ainda estejam apenas manuscritas e, por isso, pouco acessíveis aos executantes.
Seu principal exemplo é um compositor que não é antigo, nem muito menos obscuro: Tom Jobim. O autor de "Corcovado" e "Sabiá" também compôs obras orquestrais, como o poema sinfônico "Brasília: Sinfonia da Alvorada", de 1959, em parceria com o poeta Vinícius de Moraes (1913-1980).
A composição celebra em cinco movimentos a construção da nova capital no Planalto Central e deveria ter sido executada no dia da inauguração da cidade, em 21 de abril de 1960. Os planos acabaram frustrados, porém, e a gravação do poema sinfônico só seria lançada no ano seguinte. "E se alguém quiser apresentar a sinfonia de Brasília hoje? Cadê o material?", questiona Lanzelotte.
Com 15 anos de atuação, o portal se tornou referência para músicos nacionais e estrangeiros, angariando patrocínios e apoios como BNDES, Instituto Vale e farmacêutica EMS. A Fundação Wikimedia também contribui para a difusão internacional, e a Unesco se tomou parceira em 2017.
A Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos selecionou o projeto para seu programa de arquivamento na rede. Lanzelotte comenta que o portal foi credenciado como entidade sem fins lucrativos pelo Google e , o que lhe rende um crédito diário de US$ 329 para anúncios online. "Essa publicidade tem nos rendido um público internacional relevante."
Graças ao trabalho de arquivo, digitalização e desenvolvimento de algoritmos , o IMB tem credenciamento como Instituição Científica, Tecnológica e de Inovação no Ministério da Ciência, o que lhe dá acesso a financiamentos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. O ministério também contribui por meiodo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, que realiza a preservação digital das partituras.
Esses recursos permitem manter uma equipe que gira em torno de 25 pessoas, que trabalham com os documentos manuscritos e edições antigas, digitalizando-os, transformando-os no formato "prático", catalogando-os e os colocando em repositórios.
O próprio IMB não realiza a guarda e a conservação de arquivos, mas opera em parceria com instituições como a Biblioteca Nacional, a biblioteca da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), o Arquivo Público do Estado do Maranhão, o Instituto Moreira Sanes, o Museu Carlos Gomes e a Editora Fermata.
As tecnologias mais avançadas também tem suas armadilhas. Atualmente, uma das mais perniciosas é a descontinuidade de formatos digitais e softwares. Em agosto do ano passado, uma notícia abalou o mundo da notação musical: o programa Finale, usado na escrita, transcrição e digitalização de partituras desde 1988, não será mais atualizado. Esse era o software usado no Musica Brasilis, que teve de migrar para seus concorrentes, o Sibelius e o Dorico. Para evitar problemas com formatos descontinuados, os arquivos são guardados como MusicXML.
Além dos manuscritos, uma fonte importante de partituras é o espólio da pujante indústria de edição musical que existiu no Brasil do século XIX até meados do XX. O país chegou a ter mais de 2 mil títulos publicados por ano, em um tempo sem rádio ou televisão, quando as casas costumavam ter pianos na sala para que as pessoas pudessem ouvir música. Algumas das editoras do período ainda existem, como a Irmãos Vitale, mas hoje praticamente só coletâneas continuam vindo a público.
Entre o material ainda inexplorado, Lanzelotte cita os arranjos de Radamés Gnattali (1906-1988) e Lyrio Panicali (1906-1984) para a orquestra da Rádio Nacional. Em São Paulo, os 30 mil itens do acervo do Conservatório Dramático e Musical, importante escola que operou de 1906 a 2009, estão sendo tratados e digitalizados por pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
A digitalização permite redescobertas também para os próprios músicos. Em 2014, o concerto "Bela Música, Bela Época", da Orquestra Petrobras Sinfônica, apresentou composições de Alberto Nepomuceno (1864-1920) e Glauco Velásquez (1884-1914), digitalizadas pelo Musica Brasilis. Na ocasião, muitos músicos tiveram seu primeiro contato com uma parte quase inédita da obra de Nepomuceno, compositor nacionalista que defendia o uso do português na lírica clássica e influenciou Villa-Lobos.
"Participei dos ensaios e pude ver a alegria dos membros da orquestra. Eles manifestavam muita surpresa com a qualidade do repertório que iam tocar. E se perguntavam: como é possível que a gente nunca tenha ou vido isso?", relembra a musicista.
A realização de concertos e recitais como esse é outra vertente de atuação do instituto, compondo o Circuito Musica Brasilis, com apoio do BNDES Lanzelotte faz questão, porém, de que não sejam apenas ocasiões de execução musical, com o formato rígido e cerimonioso frequentemente associado à música de concerto. "Isso é completamente datado. Vem do século XIX. Antes não era assim sim: a música fazia parte de um espetáculo, as pessoas comiam, faziam barulho, conversavam", comenta. Por isso, os eventos do Musica Brasilis envolvem uma "roupagem visual e cênica", com iluminação, projeções de imagem de imagens e atores que representam os compositores e outros personagens contemporâneos. "Queremos aproximar o espetáculo dos diferentes públicos, principalmente os jovens, que nos esforçamos muito para atrair", diz a concertista.
O mais recente desses espetáculos foi feito na comemoração dos 15 anos da entidade e homenageou dois compositores que estão entre os criadores do choro, gênero nascido no Brasil: Ernesto Nazareth (1863-1934) e Chiquinha Gonzaga (1847-1935). Com coreografia de Dalal Achcar, texto de Ruy Castro e direção musical de Paulo Aragão, o espetáculo "Abram Alas para Chiquinha e Nazareth" teve Marcia do Valle como Gonzaga e, alternadamente, Alan Hauer e Adam Lee como Nazareth.
A cravista acrescenta que parece existir um "preconceito ao contrário" contra a música "que não é comercial", tratada como se fosse acessível apenas às classes mais altas ou pessoas com pendor intelectual. "Mas essa não é a minha experiência, nem como concertista, nem pelo Musica Brasilis. Fazemos apresentações em bairros periféricos, para jovens, e as pessoas têm grande interesse e percepção pela música de grande qualidade. Não podemos perder a oportunidade de usar a música, que está no nosso DNA, como ferramenta de educação", diz. Recentemente, o instituto passou a compartilhar também ferramentas educacionais, como materiais explicativos sobre instrumentos musicais, compositores e práticas da música no Brasil. No canal do YouTube, que tem 14,4 mil inscritos, são compartilha dos vídeos gravados por músicos que recorreram às partituras disponibilizadas pelo instituto, no projeto que se chama "Você no Musica Brasilis".
Essas iniciativas explicam o salto de 81% nas visualizações no ano passado, chegando a mais de 447 mil. Dos projetos atuais, o mais importante, para Lanzelotte, é o de disponizar a integralidade das óperas de Carlos Gomes, (1836-1896), maior compositor brasileiro do período romântico. Sua música é conhecida do público geral principalmente pelos acordes que abrem "O guarani", de 1870, e são ouvidos todos os dias nas rádios do país quando começa a Voz do Brasil. Mas Gomes é autor de nove óperas, como "Lo schiavo", "Fosca" e "A noite do castelo".
Lanzelotte lamenta que Gomes não seja reconhecido atualmente como a figura importante que foi em sua época, assinalando que o compositor italiano Giuseppe Verdi (1813-1901), autor de algumas das óperas mais executadas no mundo, como "Il trovatore", "Ainda" e "Rigoletto", chegou a considerá-lo como seu sucessor. "É o único compositor não italiano que teve mais de três estreias perante o público mais exigente de ópera do mundo, o do Teatro Alla Scala, de Milão", acrescenta.
A falta de partituras, justamente, é uma das explicações para a ausência do brasileiro no cânone mundial. Na década de 1990, o tenor Plácido Domingo chegou a representar o herói Peri quando era diretor da Ópera Nacional de Washington, nos Estados Unidos, graças aos esforços do empresário musical Walter Beloch, que é brasileiro e vive em Milão. Domingo tinha a intenção de montar mais uma de suas óperas, mas o projeto não foi adiante. "Mas acredito que se ele tivesse sido editado como foram o francês Georges Bizet e Verdi, o cenário seria muito diferente", completa.
Embora tenha se graduado em piano pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1975, a dedicação integral à música chegou tarde na trajetória de Lanzelotte, que trabalhava principalmente com pesquisa e ensino de informática até o início da década de 1990. Foi ao terminar um estágio pós-doutoral na França em 1992 que decidiu se afastar da universidade para enveredar pela vida de concertista. Especializou-se em cravo e música barroca em Haia, nos Países Baixos, e gravou seu primeiro disco como solista, dedicado a Johann Sebastian Bach.
Hoje, se a atividade de concertista convive com a administração do Musica Brasilis, é porque a equipe consegue manter o funcionamento sem supervisão. "Eles sabem que quando estou preparando um concerto, não podem contar comigo. Por sinal, é isso que vai acontecer agora: vou entrar em um intervalo de fortes estudos, por causa das apresentações do Ano do Brasil na França celebrado novamente este ano.
Por Diego Viana, para o Valor de São Paulo.
Ajude o instituto
Musica Brasilis
Para manter a música brasileira viva, o Instituto conta com a doação de diversos colaboradores. Faça parte.
Quero doar